Ideologia: Entenda do que falamos quando falamos sobre!
Ideologia: Entenda do que falamos quando falamos sobre!
Nos últimos anos, surgiu um grande interesse pelo tema da ideologia, tanto dentro, quanto fora do âmbito acadêmico. Mas entender de fato o que isso quer significar ainda é um problemão, especialmente porque não há um consenso sobre o que ela significa. É preciso ter em mente algumas coisas quando vamos discutir o tema IDEOLOGIA.
Palavras Iniciais
O debate sobre ideologia se tornou mais acalorado nos últimos três anos, em que vários representantes políticos e influencers começaram a chamar fulano de alienado porque segue uma ideologia tal, ou que determinado partido defende uma "ideologia de gênero".
As farpas eram recíprocas. No âmbito acadêmico, se debate ideologia desde o século XIX, mas a própria palavra possui tantas conotações que fica, muitas vezes difícil dar-lhe um único sentido.
Apesar de tudo isso, é possível caminhar por um rumo relativamente satisfatório para que possamos entender o que é e como acontece uma ideologia.
Vão aqui 4 avisos que você precisa saber antes de apontar que seu rival vive uma ideologia.
1. Não há um consenso quanto ao significado do termo
Em 1801 o Conde de Tracy publica sua obra “Elementos de Ideologia” em que lança um novo campo de estudo: a Ideologia. Essa ciência estudaria os fundamentos das ideias e da consciência humana.
Destutt (Conde) de Tracy (1754-1836). Fonte: Wikipédia.
Mas de Tracy, após discordar de alguns aspectos da política de Napoleão, passou a ser chamado de ideólogo, mas em um sentido pejorativo. Tanto ele quanto qualquer outra pessoa que o seguisse é um falsificador da realidade, ou um ideólogo.
Napoleão possuía muito mais fama de De Tracy. No fim das contas, o conceito que acabou se popularizando foi esse difamatório mesmo.
Para fins didáticos ( e com alguns riscos), eu gosto de utilizar a definição da maravilhosa Marilena Chauí (uma das referências internacionais no assunto)
Para ela, a ideologia é uma construção histórica de uma classe para dominar a outra. A ideologia, neste sentido, está ligada diretamente a um tempo e a um espaço sociais.
“A ideologia é um instrumento de dominação. Ela é a maneira pela qual a classe dominante de uma sociedade faz com que as ideias, que são próprias dela apareçam como válidas para a sociedade inteira” (Marilena Chauí)
Marilena Chauí.
A principal função da ideologia, veja só, é justamente esconder esse movimento histórico no tempo e no espaço que a humanidade realiza.
Escondendo certos fenômenos ou processos, a classe dominante consegue mostrar à classe dominada a sua forma de ver o mundo sem muita resistência, trocando o chicote e os castigos físicos por ideias e palavras bem elaboradas.
Mas ainda assim, parece que o termo ideologia realmente surgiu para ser palco de confusões. Vide o próprio exemplo do que significa ideologia na tradição marxista.
Para Marx (e também Engels), ideologia é um conjunto de pensamentos que a classe dominante insere na vida da classe dominada. É um mecanismo que só que é opressor pode usar.
Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Fonte: Aventuras na História
"Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época".
(Marx e Engels - A Ideologia Alemã)
Mas para Lênin e Gramsci (importantíssimos continuadores do socialismo científico) ideologia é basicamente um conjunto de ideias com as quais enxergamos o mundo e a nós mesmos. Dessa forma é que precisamos de um modelo de pensamento para nos enxergarmos na sociedade, caso queiramos construí-la ou formar uma nova.
"[...] as forças materiais são o conteúdo e as ideologias as formas - sendo que esta distinção entre forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais"
(Antônio Gramsci)
Esse conflito de entendimentos se deu, principalmente porque tanto Lênin quanto Gramsci não tiveram contato com a obra que Marx discorre sobre o problema da ideologia – A ideologia Alemã – que só viria a ser publicada anos após a morte desses dois.
Apesar de trabalhar com possibilidades, entender o que realmente significa ideologia ainda está longe de se ter uma resposta conclusiva, tanto entre os marxistas, quanto na comunidade científica e filosófica em geral.
2. Ideologia não é, necessariamente, falsidade
Apesar de concordar muito tanto com as posições da Marilena, quanto das de Marx e Engels, o debate de ambos não esgota tudo que podemos saber sobre ideologia.
A construção da ideologia se dá por mecanismos de pensamento e produção social. Na medida em que nós mudamos, nossas ideias irão mudar. O problema tem sido, justamente, querer conservar algumas ideias como eternas.
Durante muitos séculos, pensou-se que alguns filósofos não precisavam ter suas ideias testadas, de tão importantes que eles foram. Um caso bem conhecido é o de Aristóteles.
Certa vez, ele escreveu que uma pedra e um objeto de madeira, se jogados ao mesmo tempo, o que fosse mais pesado chegaria primeiro ao chão. Todo mundo simplesmente acatou.
Mais de mil anos depois foi que Galileu procurou testar essa afirmação de Aristóteles. E, pasmem, o grego estava equivocado! Tanto a pedra, quanto o objeto de madeira, chegaram ao chão ao mesmo tempo.
Acreditar também que a ciência é perfeita e imutável, que as ideias criam a matéria, que Newton encontrou leis "universais" são precisamente complicadas.
Nossa capacidade de enxergar fenômenos é limitada. Sequer conhecemos toda nossa galáxia para afirmar leis que sejam universais. Muito do que fazemos são suposições.
Isso não tira, pelo que se possa pensar, todo o crédito e a importância que a ciência e a comunidade científica possui. Criamos tecnologias que nos auxiliam a partir dessas descobertas.
Muitos estudiosos do pensamento científico o diferenciam dos demais pelo fato de que a ciência é aproximadamente verdadeira e está passível de crítica constantemente.
Caso, não seja possível criticar, refazer o experimento em outros locais, analisar a veracidade ou melhorar o que está colocado, não pode ser considerado uma teoria própria da ciência.
Com tudo isso, o que quero colocar é que, se por um lado, não há como falsificar uma ideologia, já que esses conceitos absolutos de certo e errado também são problemáticos, por outro, não podemos supor que qualquer ideia que tenhamos será verdadeira para todo o sempre.
O processo histórico e social nos leva a entender que aquela forma de pensar, que antes respondia aos nossos anseios, hoje está obsoleta. Entender que as ideias são fruto da convivência humana torna as coisas bem mais possíveis de entendimento.
3. Não confie nas ideologias que você segue
Confiar é um verbo complicado se está próximo de ideologia. Em geral, devemos nos questionar sobre as ideias que supomos serem tão verdadeiras, mas tão verdadeiras, que nem precisamos mais verificar se não há algum probleminha com elas.
Fonte: Veritatis
É um exercício bastante complicado, porque envolve lidar com certezas que construímos para nos sentirmos bem, entrarmos em uma zona de conforto.
Em 2009, quando o clipe de Alejandro da Gaga foi lançado, eu fiquei com muita raiva dela. Eu amava a Gaga pelo estilo dela, pelas performances, pelas produções anteriores.
Mas no dia que ele mexeu com o meu jeito de crer e de vivenciar minha religiosidade, eu fiquei pistola.
Larguei de mão de Lady Gaga por dois anos.
Em 2011, ela lançou o clipe de Judas. E eu fiquei: "???"
Eu sinceramente fiquei com raiva da forma que ela expressava a arte dela para comunicar alguns aspectos do cristianismo e do catolicismo.
Ao entrar para a universidade, eu comecei a ter contato com ideias diferentes, com pessoas que, apesar de serem cristãs, tinha um posicionamento mais crítico para com o cristianismo.
Aliás, uma coisa boa da universidade pública é essa liberdade de debater ideias. eu nunca encontrei em outro lugar.
Ao me abrir para o diálogo, eu comecei a entender que boa parte das regras da igreja e do cristianismo como um todo foram criadas pelos apóstolos e pelos cristãos que vieram depois.
Ao ler a letra de novo e analisar novamente os clipes referidos, eu fiz um esforço de tentar entender que mensagem a Gaga queria passar com aquilo.
E ela estava corretíssima ao abordar temas como sexualidade, repressão de libido, traição e humanidade em suas obras.
Ajudaram-me a entender que o cristianismo construiu indivíduos altamente recalcados, do ponto de vista psicanalítico, indivíduos que não podem vivenciar suas experiências no seio religioso e precisam optar pela hipocrisia para não enlouquecer.
4. Você não pode até não fugir de uma ideologia, mas pode criticá-la
A todo instante somos chamados a participar ou enxergar o mundo por meio de uma ideologia. É muito difícil fugir de uma ideologia porque ela precisamente é a aparência que temos de algum fenômeno.
Além disso, estamos limitados, como me referi mais cedo, a um determinado tempo e espaço, sejam eles físicos ou sociais.
Só conseguimos ver até a medida em que o pensamento social e coletivo nos apresenta algo para que vejamos.
Se por um lado não podemos fugir de uma ideologia, por outro, não precisamos necessariamente defendê-la como verdade absoluta. É possível ser cristão e criticar a ideologia cristã, assim como é possível se identificar com comunista e criticar a doutrina.
Evidentemente, algumas instituições aceitam com maior facilidade a liberdade de crítica que outras. Mas isso também não é algo que precisemos nos preocupar muito. A não ser que queiramos que pensemos assim.
Criticar as posturas ideológicas que seguimos nos ajuda a ter maior autonomia sobre esse determinado pensamento. Isso é inalienável.
Quando entramos para um novo grupo social e somos aceitos, geralmente surge em nós grande euforia. Com o tempo, queremos participar cada vez mais, construir, ajudar no que for possível.
Com mais tempo, vamos começando a ver que nem tudo são flores. Daí, surgem as ideias contestatórias. Temos três caminhos a partir daí: ou largamos do grupo, ou vivemos com críticas abertas, ou vivemos com críticas veladas.
A cada situação, nós somos chamados a assumir um desses caminhos, quando nos referimos a ideologia.
Podemos ter grande autonomia e liberdade para participarmos dos espaços sociais que nos sentirmos confortáveis, mas precisamos sempre desconfiar se, por um lado, tudo está muito certo, ou, por outro, se tudo está errado.
Lembremos que as construções humanas são passíveis de falhas, concertos, remendos, criações.
E a tal da ideologia de gênero?
Eu deixei esse para o final porque julgo necessário um “estudo de caso”.
Eu me lembro de ter ouvido esse termo em 2017, numa aula de sociologia no Cursinho Popular. Falávamos sobre a importância de ter sociologia nas escolas. Um estudante levantou a mão e disse: “Realmente, precisamos de aulas de sociologia para fugir da ideologia de gênero”.
Fiquei estupefato porque não sabia o que aquilo significava. Perguntei pra ele o que era essa tal ideologia de gênero e ele me respondeu: “É uma ideia de mudança de sexo que os comunistas querem implantar nas escolas”. Caí pra trás duas vezes.
Quando fui pesquisar em casa sobre esse assunto, eu simplesmente não encontrei nenhum pesquisador que sequer tivesse apresentado um resumo sobre o tema. Eu basicamente encontrei escritos em vários blogs e sites conservadores sobre o tema.
Aparentemente o termo surgiu na europa em 2014. Mas foi aquilo: alguém disse que existia, mas não trouxe comprovações empíricas, estudos de revistas especializadas, observações de pesquisadores. Mas pediu muito para que acreditassem, porque existia.
Quem apoia a ideia de uma ideologia de gênero é o mesmo grupo que apoia a compra e venda de milagres, na ONU comunista, na ditadura gayzista, no terra-planismo, enfim, gente mal-caráter que quer lucrar com o medo da população.
Mas o que chama a atenção nessa história de ideologia de gênero é a construção de uma ideologia que usa o termo ideologia para esconder todo um processo histórico da sociedade humana.
Particularmente, eu penso ser perigoso disseminar uma ideia tão vazia de sentido em nações tão pouco letradas como o Brasil.
Somos inclinados culturalmente a acreditar cegamente em superstições bobas e em milagres, coisas sobrenaturais (apesar de saber que nem tudo é explicado pela lógica física).
O problema está precisamente na noção de distorcer a realidade para amedrontar a população, que também é medrosa por instinto.
Como não sabemos direito a que se refere, procuramos uma imagem que mais possa se aproximar do que o outro (uma autoridade) está se referindo. E isso é péssimo, porque fica tudo subentendido. Nada fica evidente. Isso é um excelente recurso dos processos ideológicos.
Um perfeito exemplo do que pode ser uma ideologia.
Bem-vindo ao mundo da ideologia!
Agora você já sabe do grande segredo: Todxs nós somos influenciadxs por várias ideologias!
Com isso, algumas posturas você precisa rever:
Primeiro, pare de acreditar que você é um ser iluminado, acima do bem e do mal. Analise a raiz de suas ideias e pare de menosprezar seus adversários políticos ou ideológicos!
Segundo, entendendo que você sobre influência de uma ou outra ideologia, você pode procurar entender que está se beneficiando da forma como você pensa. Será que você concorda com isso?
Deixa aqui nos comentários sua visão sobre esse conteúdo. Sua opinião é super importante para nós. Nos ajuda a ver onde estamos errando e onde estamos acertando. Nos ajuda a crescer!
Périklys Wellinson. Filósofo e educador.
Postado originalmente no Blog "Novos Cabanos".
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